terça-feira, março 08, 2005

Aquele da crônica perdida...

Uma pequena crônica escrita há muito tempo atrás...

'Não me arrependo de nada do que eu fiz na vida. Pois eu já fiz de tudo'. Parecia até slogan de propaganda de bebidas, mas ele dizia isso a todos que o questionavam sobre seus arrependimentos. Os olhos encantadores dela encaravam-no com um brilho que nunca tiveram antes, 'eu já deveria estar morto, então o que vier de agora em diante é lucro'.
Enquanto dirigiam-se ao aeroporto ele continuava contando a história do acidente de carro que sofrera há uns 16 anos. 'Cheguei a ficar alguns minutos morto. Os médicos já tinham desistido até que meu coração voltou a bater sozinho'. Enquanto isso, no rádio, uma de suas bandas preferidas compunham a trilha. 'Acho que essa música é tema de um filme' ela pensava enquanto aquele homem continuava contando como sobreviveu ao acidente.

Ela era do tipo que sempre tinha alguma coisa de bom pra dizer. Ajudava muito os outros, mas dificilmente conseguia resolver seus próprios problemas. Nunca se achou uma pessoa realmente presente. Trabalhava até tarde e nos finais de semana costumava ficar em casa, trancada no quarto, pensando em tudo que poderia estar fazendo se não fosse tão insegura. Nunca se sentiu realmente necessária e naquele momento em especial começou a pensar em tudo que já fez na vida, em tudo que já sentiu. Sempre sentiu demais.

Enquanto ele procurava uma boa vaga para estacionar, uma frase não saia da cabeça dela, 'Não me arrependo de nada do que eu fiz na vida’. Ela era cerca de 15 anos mais nova e já guardava no coração arrependimento suficiente para amargar a existência de alguém com muito mais experiência. Colocou-se a pensar em tudo o que tinha feito, será que ela também não se arrependeria das coisas daqui alguns anos? Sempre achou que deveria ser mais ousada na vida e naquele momento teve certeza.

Saíram do carro e ela ainda estava calada. Nunca se poderia adivinhar seus pensamentos, mas naquele momento não era difícil saber que estava mergulhada naquele segundo, que já começava a se tornar lembrança ao chegarem no aeroporto. Sempre sentiu demais e agora tinha certeza de que, se existe mesmo um destino para todos nós, o dela era um tirador de sarro de primeira.

'Queria que o tempo parasse agora' ela murmurou baixinho para que ele não a escutasse. Poderia não ser lá bem interpretada, nem por ela mesma. Horas depois, no avião, ela se arrependeria pelas palavras não ditas. De qualquer maneira agora aquele homem, antes desconhecido, significava algo na sua vida. E de uma maneira mais qualquer ainda ele ficaria, por sarcasmo do destino, no lugar errado da sua história.
'Caixão não tem gaveta, linda. Dessa vida nós não levamos nada' e isto era mais uma verdade que ficou martelando na sua cabeça durante as horas intermináveis daquele vôo de retorno.

Seria perfeito se a vida fosse como assistir a um vídeo em casa com o controle remoto na mão. Passaríamos pra frente os momentos mais tristes e poderíamos voltar sempre que desejássemos rever os momentos mais alegres. E se não gostássemos daquele gênero poderíamos escolher um outro na locadora no dia seguinte, e mudar tudo em questão de minutos.

Naquele mesmo dia, voltando pra casa, ela ficou pensando no que acabara de acontecer. Enquanto assistia o pôr-do-sol por cima das nuvens lembrou mais uma vez do que viveu naquela tarde, como se mantê-la na lembrança pudesse deixá-la menos distante do que ficaria no futuro e mais dentro de si do que já estava agora. Aquele segundo eterno e imutável, que se torna parte de nós para sempre.
Antes de pegar no sono ainda pôde assistir alguns minutos do filme que passava no avião. A história de um homem que constrõe uma máquina do tempo, para poder viver para sempre os mesmos 15 minutos do seu próprio passado...

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